Sagrado feminino ou só mais um checklist?

Para quem serve os "rituais" vendidos na internet?

22|10|2024

- Alterado em 22|10|2024

Por Pam Ribeiro - Bruxa Preta

O papo de “sagrado feminino”, cheio de cristais, banhos de ervas e círculos de lua cheia que vemos por aí, não é tão simples. E vamos ser realistas: isso foi apropriado e empacotado como se fosse um clube exclusivo, uma caixinha bonitinha que você precisa abrir pra ser “conectada” de verdade.

Mas será que é isso mesmo? Estamos falando da mesma espiritualidade que nasceu das práticas ancestrais de diversas culturas ao redor do mundo, muitas vezes com significados profundos, agora transformada em um produto de consumo?

Para começar, o “sagrado feminino” como a gente vê hoje, todo instagramável e padronizado, é uma versão diluída e, em muitos casos, distorcida de tradições espirituais que foram apropriadas, especialmente das culturas indígenas, africanas e orientais.

Esses elementos foram repaginados, embrulhados e vendidos como um combo de autocuidado. É quase como uma lista de tarefas: cristais, yoga, banhos de ervas, círculo de lua cheia… Aí, de repente, se você não segue essa fórmula, você não está “na vibe” ou não é “espiritual o suficiente”.

Eu, particularmente, amo todos esses elementos, e posso afirmar que eles são extremamente eficazes quando utilizados de maneira adequada, atrelados a outras campos de nossa vida que podem ser tão benéficos quanto.

Mas, a grande ironia é que a espiritualidade — aquela que era vivida de maneira visceral por nossos ancestrais — nunca foi uma receita pronta, nem deveria ser. Cada cultura, cada povo tem suas próprias práticas, e, acima de tudo: a espiritualidade sempre foi algo muito mais orgânico e diversificado do que esse modelo engessado que nos fazem acreditar.

Porém, o problema vai muito além de não se identificar com os rituais da moda. Existe uma questão política nesse cenário, uma vez que o “sagrado feminino” foi transformado em produto, um pacote de “autocuidado” para mulheres de classe alta, alienando muitas outras que não têm tempo, espaço ou dinheiro para comprar esse tipo de elemento.

Isso reforça a ideia de que a conexão espiritual só é acessível para quem pode consumir esses produtos e práticas. E aí, quem é que está realmente se beneficiando nessa história?

E vamos falar sério? Nem todo mundo vai se conectar com cristais ou com as fases da lua. O problema é que vendem essa versão como se fosse a única via possível. Gerando uma sensação de inadequação que afasta quem não se sente representada por esse molde pasteurizado.

A espiritualidade, na sua essência, nunca foi sobre cumprir uma lista de afazeres ou aderir a rituais mercantis pré-definidos. Ela é, antes de tudo, sobre encontrar o que faz sentido pra você, dentro da sua realidade, da sua história, do seu contexto. É algo íntimo, pessoal, e, acima de tudo, livre.

Lembremos que muitas das práticas que hoje fazem parte desse “sagrado feminino” eram, em suas origens, formas de resistência. O uso de ervas, a cura através das mãos, os rituais com a natureza eram ferramentas de sobrevivência e conexão em comunidades marginalizadas e desprovidas de recursos. Quando a espiritualidade se torna um produto de luxo, desconectado de suas raízes, estamos perpetuando um ciclo de exclusão.

A questão aqui é criar espaço para diferentes vivências espirituais, sem checklist, sem regras de pertencimento. Espiritualidade é sobre conexão, sim, mas que faça sentido pra quem você é, no tempo em que você vive, com as ferramentas que você tem.

Talvez para algumas seja um banho de ervas; para outras, uma caminhada na natureza, uma conversa com uma amiga, ou até um silêncio interior. Tudo isso é válido. A força não vem de fora, de cristais ou rituais pré-formatados, mas do que ressoa em você.

Se a espiritualidade serve para nos fortalecer e reconectar, não deveria existir um modelo único. Portanto, precisamos parar de romantizar práticas que muitas vezes são esvaziadas de seu verdadeiro significado e começar a questionar: pra quem serve esse tipo de padrão? Quem está sendo deixado de fora?

E mais importante, como podemos criar formas de conexão que realmente respeitem nossas experiências individuais, ao invés de impor um modelo que muitas de nós não conseguem (ou não querem) seguir?

Porque, no fim das contas, é sobre ser quem você é, com o que você tem.

E isso não cabe numa fórmula.

Pam Ribeiro - Bruxa Preta Terapeuta reikiana, taróloga, astróloga, bruxa urbana e favelada. Autora do portal "A Bruxa Preta", em que escreve sobre espiritualidade, misticismo e universo holístico numa perspectiva decolonial e subversiva.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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